A época que passa por nós parece neste momento já infinita. Estendeu-se no tempo a presença desta infeção, que parece ter vindo para ficar, alterando vidas: rotinas, relacionamentos, gestos do dia-a-dia. Mas a maior mudança que veio trazer foi para com o próprio. A maior mudança foi dentro de nós que ocorreu.
As emoções manifestaram-se todas como se fossem uma criança que tudo quer em simultâneo e demonstra a frustração de jamais poder ter tudo. Estas emoções em simultâneo são como aquele hábito terrível que se tem de falar por cima da conversa do outro evitando que o mesmo se expresse. O grande desafio é que com essa atitude raramente o outro nos vai escutar, pode ouvir… mas é muito diferente de escutar. Mas lá do alto do nosso ego achamos que conseguimos atenção. É o que é.
Neste período também infinito de confinamento, cada um em vez de escutar o seu interior começou a ouvir as emoções e sentimentos, todos ao mesmo tempo. Ouviu apenas. A confusão de vozes que se fez dentro da mente de cada um foi de tal forma grande que apenas conseguimos escutar uma, a melhor ou a pior. E assim neste período em que nos foi oferecida a oportunidade de pensar descobrimos coisas num baú que para alguns foi como uma caixa de pandora. Para outros terá sido um período de reconhecimento de si próprio permitindo-se ver o espelho da sua imagem com outros olhos.
Pois é verdade, o melhor e o pior de cada um manifestou-se e uma pandemia de vozes mentais teve finalmente voz ativa.
É óbvio que o confinamento foi muito cansativo, teletrabalho, crianças ao mesmo tempo, família ao mesmo tempo, relacionamentos que antes eram fugazes ficaram assustados porque agora teriam que ser a tempo inteiro.Mas também vemos aquilo que queremos ver. Foi-nos dada uma oportunidade de escolher a voz interior que queríamos, a escolha foi nossa… a melhor ou a pior. Bem isto poderia ser ainda mais profundo e diríamos que jamais há certos ou errados, mas se esta nossa manifestação do melhor ou pior interferir na vida e emoções do outro isso é diferente.
Quantos de nós durante o confinamento fomos ajudados, levados ao colo, por outros que se disponibilizaram para múltiplas coisas, por exemplo levar as compras a casa para os mais suscetíveis de se infetarem ficarem resguardados. Nessa altura houve uma onda de solidariedade vinda de cada um que parecia que seria finalmente desta vez que nos tornaríamos altruístas ao ponto de conseguirmos olhar para o próximo e vê-lo e aceitá-lo tal como ele é. Parece que a humildade tinha vindo ao de cima. Ilusão… pois assim que nos pudemos relacionar novamente, o mais próximo possível do que fazíamos antes, esquecemos o que fizeram por nós. E a sede de liberdade é tanta que se passa por cima de qualquer coisa ou bem que nos foi feitodurante o confinamento para atingirmos o nosso objetivo. Como se costuma dizer temos memória curta. Percebe-se nos gestos, nas atitutes, no olhar, a agressividade, avareza, ingratidão e tantas outras emoções e sentimentos que desconhecíamos naquele com quem estivemos tantas vezes quer a nível familiar, profissional ou social.
O melhor e o pior de cada um veio ao de cima e a sociedade ficou confusa, parece que ainda mais do que anteriormente, porque com o tempo que tivemos para pensar iludimo-nos que a mudança do mundo para melhor poderia estar a acontecer com ondas de solidariedade de esforço contínuo de muitos para que outros ficassem bem.A sociedade já era assim, só que ainda não tínhamos percebido. Continua a ser-nos dada (é sempre dada) a oportunidade de mudança. A noção de solidariedade, de gratidão pelo que lhes foi feito terá ficado para alguns… fantástico, porque salvar uma vida é salvar o mundo inteiro, mas precisamos de ser mais e quiçá todos, pois só assim ficaremos completamente a salvo.
Pela Pediatra Vera Silva