Determinar quem somos ou o que queremos ser envolve uma mudança para a qual poucos estão preparados e socialmente minoritariamente aceites (por mais que se diga, aceito, será apenas se for longe de nós e com outros que nos são indiferentes). Acompanhar um processo de mudança do próprio Eu é um desafio para quem o faz e quem o acompanha. Nascemos pais quando o nosso filho/filha nasceu, sem manual de instruções e com expectativas iguais às que nos foram incutidas. Mas a vida é feita de desafios e há que agarrá-los para que nós e o mundo transformem mentalidades. Aquilo que nos constrói enquanto seres humanos é absorvido pelos momentos que diariamente são partilhados com o mundo que nos rodeia. Aprendemos a socializar num contexto envolto pela família, escola, pares. Dentro de cada um de nós está um potencial infinito de saber, aprendizagem e ensino, mas a cegueira social tolda-nos, muitas vezes por completo. Seguimos opiniões sem percebermos que nós somos tão válidos como qualquer outro ser humano. A auto-estima perde-se a ela própria no meio de tanta informação. Não sou o estereotipo social da “perfeição” porque não tenho as medidas que cabem naquilo que é aceite. Espartilhados em fatos e máscaras que nos amarram criamos traumas e sofrimentos que seriam desnecessários se tivessemos a coragem para mostrar ao mundo quem somos e o que gostamos de ser. Mas mesmo assim, dentro das nossas possibilidades lá vamos vestindo e penteando o que se adequa mais às expectativas dos outros. Toda a mudança pode ser aceite, sim, não vestir a moda (a moda somos nós) e até somos alvo da compreensão dos outros porque economicamente não podemos. Mas quando se trata da nossa identidade, aí a compreensão desvaneceu-se- Parece um tema muito debatido até porque já existe lei! Aleluia! Mas essa lei não muda os olhares, os julgamentos, o martírio porque todos os que não cabem no corpo que lhes foi atribuído, passam. Muitas destas situações terminam em suicidio. Pois… e se fosse um filho/filha vossos que atentasse contra a própria vida porque não é aceite no género que escolheu? Verdade, entrámos num campo que também não nos pertence. É do vizinho, amigo, filme, etc., mas não é nosso porque a nós nunca acontece nada que não seja extipulado socialmente.
De acordo com a lei nº38/2018 os jovens e crianças são protegidos na sua escolha de género. A crítica social será muita, mas apenas apelo ao que cada um de vós sofreria se se sentisse excluído socialmente porque quer ser ser o que é. Não é diferente… é um ser humano e a pele é toda a mesma. Parece um abismo? Não. Todos temos abismos e se nos dedicarmos a dar-lhes atenção o abismo suga-nos. De acordo com a lei nº38/2018, esta veio estabelecer “o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa. Este diploma inclui a proibição de discriminação e o reconhecimento jurídico da identidade de género, bem como garantias e medidas de proteção em diversos ambitos.”
Toda a mudança da identidade de género envolve um processo tremendo dentro do próprio, como se de um furacão se tratasse. Desde a rejeição do corpo, à roupa que se decide usar, e que aqui um homem de saia não faz parte da sociedade mas noutras culturas é perfeitamente aceite, porque se habituaram a esta imagem desde que nasceram. E onde fica a mente aberta que todos dizem ter hoje em dia? Aberta para o quê e para onde? Todos têm direito à sua opinião e aceitação, mas não têm direito a maltratar o outro só porque a sua opinião é diferente. Enquanto adultos depende de nós guiarmos a criança na sociedade, sem dogmas, é importante reter isto. Porque ao não criarmos dogmas nas mentes infantis, evitamos que julguem o amigo, colega, a pessoa que vêem passar na rua. Isso é uma mente aberta, aquela que não tem dogmas. Deixamos espaço à criatividade. Sim existem homens e mulheres com genética sexualmente diferente, mas a escolha de género é outra coisa bem diferente. Devemos ensinar que existem sexos diferentes, mas também devemos ensinar que não se julga quem não cabe no corpo que lhe foi atribuído, porque nunca sabemos quando nos bate à porta. E lembrem-se bate mais vezes à porta do que aquela que julgamos, só que mantém-se encapuçada, com a máscara “perfeita” que a sociedade quer ver. A “máscara de ferro” que usamos aprisiona-nos no que somos e queremos que os outros sejam.
Quando se inicia este processo de mudança temos direito à nossa privacidade social, por isso já existe a lei, para que se cumpram os direitos humanos. Por exemplo, o nome social que o próprio escolhe é diferente do nome legal e deve ser respeitado. Reportando-nos aqui aos estabelecimentos de ensino de acordo com o Despacho n.º 7247/2019 : “Tal aplica-se por exemplo à documentação de exposição pública como pauta de notas, lista de alunos, registo biográfico e às fichas de registo de avaliação. Adicionalmente, a escola deve fazer respeitar o nome da criança ou jovem em todas as atividades escolares e extraescolares. Ainda assim, algum pessoal administrativo poderá ter conhecimento da situação, uma vez que o nome legal pode continuar guardado nas bases de dados sob confidencialidade e que continua a ser necessário mostrar o documento de identificação em algumas situações (como atos de matrícula, exames, entre outros).” Capacitar a criança e jovem de conhecimento que lhe permita explorar todo o seu potencial emocional e corporal permite-lhe estabelecer relações de afectividade com vista a um desenvolvimento e integração social saudáveis. Ao longo da sua socialização, a criança, constrói a sua auto-estima, os relacionamentos, as decisões, as crenças através dos valores que lhe são apresentados. A cognição desenvolvida através do pensamento, e a comunicação levam à descoberta e representação de si e do que a rodeia. Este aspeto desencadeia a criatividade, envolvendo aspectos culturais contextualizados no meio onde cada um de nós se insere. Quando presentes em instituições de educação devem ser criadas estruturas para que as capacidades cognitivas baseadas na socialização possa contribuir para ensinar, conviver e integrar-se socialmente.
Cada ser humano é diferente e é a diferença que permite a evolução da sociedade. Ao criarmos estruturas possíveis para que cada um se capacite de ferramentas que lhe aumentem a auto-estima, permitimos ser o que quer que seja aceite, reduzindo o conflito potencialmente existente entre os pares. A escola representa o lugar, por excelência, de uma janela aberta para um novo mundo, onde as aprendizagens e as relações sociais desencadeiam um processo mais alargado do saber estar em grupo. É neste ponto que o bem-estar psicológico de cada um tem um papel extremamente importante para o saber lidar com sentimentos como a frustração de algo que não é propriamente como desejámos. Sabendo que a felicidade nunca é total, mas constituída por um conjunto de pequenas circunstâncias que a podem tornar infinita, podemos incrementar a dinâmica de uma harmonia persistente. O não julgamento do outro ou do próprio permite que o atingir desses instantes de felicidade sejam progressivamente mais estáveis e rapidamente adquiridos.
Dra. Vera Silva – Pediatra